Os impactos do crime ambiental ocorrido em 2015 que atingiu a Bacia do Rio Doce e a necessidade de uma repactuação justa do acordo com as empresas causadoras do desastre foram debatidos em audiência pública promovida pela Comissão Interestadual Parlamentar de Estudos para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (Cipe Rio Doce). O evento aconteceu na tarde desta quarta-feira (10) na Assembleia Legislativa (Ales) e reuniu representantes dos atingidos, de instituições públicas e pesquisadores.
Na abertura dos trabalhos, a presidente da Cipe Rio Doce, deputada Janete de Sá (PSB), explicou que a audiência tinha como objetivo ouvir todas as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, com impacto em todo o Rio Doce. “A gente sente uma dificuldade muito grande dos atingidos serem ouvidos, há muito descontentamento com esse processo”, pontuou.
O deputado estadual Hudson Leal (Republicanos) falou que também é um atingido, pois tem embarcação e propriedade em Linhares. Ele pediu o reconhecimento de todo o litoral do Espírito Santo como área afetada e uma repactuação que beneficie a todos: pescadores, agricultores e demais atingidos.
Além dos citados, participaram dessa abertura dos trabalhos o coordenador da Cipe Rio Doce, Hernandes Bermudes, o assessor do deputado Lucas Scaramussa (Podemos) Arthur Loss, o procurador da Ales Ricardo Benetti e a defensora pública Maria Gabriela.
A sequência da audiência foi dividida em três mesas de trabalho e um momento final de perguntas e respostas. A primeira mesa debateu as “Perspectivas de reparação no desastre do Rio Doce: aspectos judiciais, deliberação 58 e repactuação”.
De acordo com o defensor público estadual e coordenador do Núcleo de Atuação em Desastres e Grandes Empreendimentos da Defensoria, Rafael Mello, a instituição lutou pelo reconhecimento do litoral norte do Estado como atingido pelo rompimento (Nova Almeida, Serra, Conceição da Barra, Aracruz, Linhares e São Mateus), medida obtida em 2024 com a Deliberação 58.
Ele exaltou especialmente a luta das mulheres e dos pescadores afetados pelos direitos dos atingidos, citou as vitórias pelos pagamentos do auxílio financeiro emergencial, a regularidade dos lucros cessantes anuais dos pescadores e, ainda, a discussão pelos direitos coletivos, como o abastecimento de água regularizado. “Conseguimos a primeira condenação esse ano e a gente luta para que o dinheiro seja revertido para as comunidades”, afirmou.
Segundo Elaine Costa de Lima, promotora de Justiça e coordenadora do Grupo de Trabalho de Recuperação do Rio Doce (GTRD) do Ministério Público estadual (MPES), os danos são multifacetados e apesar de valores estarem sendo debatidos, a luta é pela garantia de reparação dos 11 municípios capixabas incluídos na Deliberação 58.
Ela destacou que todas as demandas encaminhadas são incorporadas às propostas de repactuação e listou algumas: programa de retomada econômica dos municípios e das pessoas atingidas; programa residual de indenização para as pessoas que não foram indenizadas; criação de um fundo para estruturação da pesca; universalização do saneamento básico nos municípios afetados; e um fundo perpétuo para a saúde e execução das medidas ambientais, como restauração florestal e das nascentes.
Para a promotora, a Fundação Renova não vem cumprindo adequadamente o papel dela na reparação aos municípios e aos atingidos e desde 2016 a prestação de contas da fundação não é aprovada pelo Ministério Público. Por fim, criticou a postura das empresas envolvidas diante das mulheres atingidas, classificada por ela como “inaceitável”, e informou que existe uma ação neste sentido com vistas à inserção das demandas das mulheres no novo acordo.
Frederico Soares, defensor público da União que atua no âmbito dos Direitos Humanos no Espírito Santo, abordou a questão dos povos tradicionais atingidos pelo crime ambiental, como os indígenas e os quilombolas. Ele contou sobre a luta por indenizações que garantam uma efetiva reparação e pela criação de programas básicos ambientais nesses territórios.
Impactos socioeconômicos e ambientais
A segunda mesa teve como mote “Os impactos socioeconômicos e socioambientais no Rio Doce e os novos acordos de reparação dos danos provocados”.
Um dos participantes foi o coordenador Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Heider Boza. Para ele, houve um primeiro crime em 2015, que segue até hoje por causa da contaminação das águas; e um segundo crime com a criação da Fundação Renova, que na visão dele viola os direitos dos atingidos. A preocupação é que a repactuação em curso seja um terceiro crime.
“A gente não faz parte da mesa de repactuação. Como está seguindo, caminhamos para um terceiro crime. (..) A gente quer ser ouvido, mas precisamos do retorno, debater ideias, confrontar, e isso a repactuação não garante. (…) Temos um grupo grande de pessoas que não foram reconhecidos”, alertou.
Nilton José dos Santos, agricultor ribeirinho atingido de Linhares, disse não haver indenização justa para os afetados e, devido a isso, eles partiram para a luta contra as empresas. Ele mostrou imagens da plantação de cacau dele antes e depois do crime contra o Rio Doce. De acordo com o produtor rural, a falta de água após o crime inviabilizou a lavoura.
O presidente do Sindicato dos Pescadores e Marisqueiros do Espírito Santo (Sindpesmes) João Carlos Fonseca, o Lambisgóia, fez uma apresentação do percurso da lama da barragem de Minas Gerais até o Espírito Santo. Ele lembrou que o Rio Doce é a fonte do camarão do Estado todo, não apenas dos municípios diretamente atingidos, e, por isso, todos devem ser indenizados.
Lambisgoia mostrou uma série de fotos de pescados do Rio Doce com diversas alterações, como uma espécie de tumores. “Antes de fazer a repactuação peço que olhem com carinho para os atingidos, principalmente os pescadores”, clamou.
A representante da Associação de Desenvolvimento Agrícola Interestadual (Adai) e coordenadora do projeto de Assessoria Técnica Independente na Bacia do Rio Doce, Lidiene Souza, reforçou que os problemas não foram causados pelas pessoas, mas pelas empresas e pela Fundação Renova.
Segundo Lidiene, a contaminação e a permanência da lama no Rio Doce têm causado problemas na vida econômica e no modo de vida das pessoas. “São nove anos que agricultores, o turismo, o comércio, os serviços, o pessoal do surfe e a pesca estão sofrendo com esses danos”, apontou.
Pesquisa feita pela Adai indicou que as famílias da região têm medo de consumir o pescado. “Oito em cada 10 famílias pararam com o consumo e a venda do peixe. Não existe segurança para o consumo do pescado. Isso não mexe só com a vida econômica, mas com a cultura alimentar dessas famílias”, ressaltou.
Para o engenheiro florestal e presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CBH-Doce), José Carlos Loss Júnior, o dano no rio foi muito amplo. Ele mencionou que o comitê jamais foi chamado para participar do grupo responsável pela repactuação. Também considera fundamental incluir na repactuação a implantação de programa de monitoramento das águas e dos sedimentos, a recuperação das nascentes e restauração florestal, e a melhoria dos sistemas de tratamento de água e esgoto.
A secretária executiva do Comitê Gestor Pró-Rio Doce do Espírito Santo, Margareth Coelho, falou que desde o início o grupo trabalhou para suportar os efeitos da lama no Estado, mas que ninguém imaginava a dimensão do desastre. Ela classificou o fato como “o maior desastre da indústria de mineração do mundo”.
“Temos um conjunto de informações de antes da chegada da lama. Esse desastre ao longo dos anos foi se caracterizando não só como físico, mas também como químico e biológico”, enfatizou. “É um desastre dinâmico, toda vez que chove esses rejeitos se movem”, completou.
Ela também apontou três cadeias produtivas amplamente impactadas: turismo, pesca e agropecuária. Informou, ainda, que o sistema CIF (Comitê Interfederativo), do qual ela faz parte, tem a obrigação de orientar, monitorar e fiscalizar as ações da Fundação Renova.
Qualidade da água
Dois professores que integram o Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática – Porção Capixaba do Rio Doce e Região Costeira e Marinha Adjacente (PMBA), executado pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), também falaram na audiência. Renato Rodrigues Neto tocou na questão da água e dos sedimentos.
Ele contou que o grupo foi 12 dias antes de a lama chegar à foz do Doce para coletar amostras e que as análises químicas apontaram coisas comuns existentes na natureza, como ferro e alumínio, todas em concentrações normais. Entretanto, as amostras coletadas posteriormente indicaram alterações nos compostos analisados, alguns, de forma elevada. “Temos bastantes evidências do processo de contaminação e poluição”, garantiu.
Já o professor Adalto Bianchini recordou aos presentes que, por conta do desastre, inúmeros metais atingiram o rio e reportou que esses metais não podem ser destruídos e ficam se movimentando. Ele falou que 11 elementos são monitorados e ,de modo geral, os pescados dos locais atingidos possuem certo grau de contaminação, representando riscos para a população.
“Estamos vivenciando um efeito crônico, por não serem destruídos os metais vão continuar agindo. Vêm do rio, desce, se acumula na foz, encontra o mar, se não consegue avançar no mar ele espraia pela costa do Estado, da Bahia e até a costa norte do Rio de Janeiro. É praticamente impossível retirar essa quantidade de metais (das águas)”, observou.
Visão dos atingidos
A terceira e última mesa da audiência teve como tema “Rompimento da barragem de Fundão: A visão do atingidos”. Luciana Souza de Oliveira, moradora de Regência e representante do Fórum da Foz e dos Atingidos nos Conselhos Municipal e Estadual de Vulnerabilidade Social do Espírito Santo, criticou a falta de representantes dos atingidos na mesa da repactuação. “O atingido não precisa de porta-voz, ele fala por si. Quem sofre com o desrespeito são os atingidos”, disparou.
Josué dos Santos Neto, produtor rural de cacau de Povoação, distrito na Foz do Rio Doce, em Linhares, falou que há 9 anos a plantação dele sofre com os efeitos dos minérios. “Estou passando por várias dificuldades. Minha produção caiu a zero, tentamos retomar esse ano. Nosso terreno é plano, moro a 40 metros do rio e não tenho fornecimento de água potável”, lastimou.
Outro participante de Povoação foi Peterson da Silva Pontes, representante da comunidade. Ele enfatizou o sofrimento diante da impunidade após 9 anos da tragédia ambiental. “Mudou o modo de vida de milhares de pessoas ao longo do Rio Doce e a Vale, Samarco e BHP Billiton estão impunes por matarem 19 pessoas e atrapalharem a vida das pessoas”, afirmou. Ele pediu medidas rigorosas contra as empresas e reforçou que os atingidos apenas querem justiça.
Por fim, falou Varner de Santana Moura, coordenadora da Comissão Municipal e Territorial de Marilândia e Colatina e coordenadora do Coletivo de Mulheres nas Comunidades Ribeirinhas de Marilândia. “O pescado antes era fonte de renda e de proteína, mas hoje isso se tornou impossível. Se os peixes estão contaminados daquela forma, imagina nós que estamos bebendo essa água contaminada?”, indagou.
Ela lembrou que quando ocorrem enchentes no rio o terreno é novamente contaminado, prejudicando a produção rural, inclusive, apontou redução na plantação de cacau de Linhares em virtude de boa parte da lavoura ser feita na margem no rio. Também relatou que árvores estão morrendo e não produzem mais como antigamente. Toda essa situação estaria levando a problemas sociais, com pessoas com sintomas de depressão.
Questionamentos
Após o encerramento das mesas foi aberto um espaço para que os atingidos pudessem fazer perguntas para os presentes e sugerir medidas a serem incluídas na repactuação do acordo. Entre as solicitações estiveram ações para ocupar os jovens das comunidades afetadas; melhorias no sistema de cadastro da Renova; pedidos de proibição da pesca em todo o Rio Doce e não apenas na Foz, como está atualmente; indenização vitalícia para os pescadores; inclusão de Patrimônio da Lagoa, em Sooretama, como área atingida; acompanhamento da saúde dos afetados; ampliação dos pontos de monitoramento da água; distribuição de água potável para os afetados; monitoramento dos animais domésticos; e ações para revitalizar os comércios das regiões afetadas.
O defensor público Rafael Mello respondeu algumas dessas demandas. Ele disse estar tomando providências a respeito do cadastro dos atingidos para que recebam as devidas indenizações. Também ressaltou que a Defensoria e o Ministério Público vão cobrar reparação justa na repactuação. Acolheu as solicitações de participação social dos atingidos e relatou que por diversas vezes as empresas atuaram para barrar a participação dos afetado, mas assegurou que as instituições lutam por isso. O defensor também se comprometeu a buscar estruturas para as crianças e os jovens.
Ao final dos trabalhos, Janete de Sá fez um compilado dos demais pedidos e anunciou as seguintes medidas: pedido de monitoramento da saúde da população atingida à Secretaria de Estado da Saúde; reconhecimento como atingidos de toda a cadeia de pescadores e marisqueiros do Espírito Santo e dos agricultores ribeirinhos da Foz do Rio Doce; ampliação da abrangência para repactuação de mais áreas, como Patrimônio da Lagoa, em Sooretama; inclusão dos impactos aos animais domésticos; reunião com a Renova para implantar as ações da Deliberação 58; monitoramento das barragens em Minas Gerais; medidas para garantia da segurança alimentar dos atingidos; e, ainda, o reconhecimento das mulheres atingidas. Fonte e foto ales